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quinta-feira, 17 de abril de 2014

RESILIÊNCIA

Trechos relativos ao trabalho criativo em Os patinhos feios de Boris Cyrulnik

Estou maravilhada, já não estou mais sozinha trilhando a senha da resiliência! O trabalho de pesquisa que Cyrulnik efetua sobre populações afetadas por catástrofes é denso e pormenorizado, aprofunda e desenvolve os diferentes traços dos feridos, no tempo observando as diferentes estratégias de sobrevivência, tendo a criatividade e a criação como meios para lidar com o horror indizível. “Aliás, a sabedoria nos ensina que “criar” significa, na língua da Igreja, “fazer nascer do nada, trazer ao mundo uma criação que não existia antes!”  
Diante do nada, quais são as nossas escolhas? Ou nos deixamos fascinar, arrebatar pela vertigem do vazio até sentir a angústia da morte, ou nos debatemos e trabalhamos para preencher esse vazio. No início, sentimos a energia do desespero, uma vez que o vazio está vazio, mas, assim que aparecem as primeiras construções, é a energia da esperança que nos estimula e nos compele à criação para sempre, até o momento em que, no fim da vida, “morremos em plena felicidade por nossas infelicidades passadas” Karen Blixen analisa o mesmo processo de resiliência que Cioran: a pressão para a metamorfose que, graças à alquimia das palavras, dos atos e dos objetos, consegue transformar a lama do sofrimento em ouro da “criação, que é uma preservação temporária das garras da morte”. 
Vou me inserir aqui: As pessoas parecem ter medo das verdades que os feridos teriam a revelar que em suma falam de uma violação, um crime que deixou marcas, arrombou o corpo físico e a identidade. Os feridos e incompreendidos têm uma grande curiosidade intelectual para conhecer as razões que levam às brutalidades, tiranias, crueldades incompreesíveis e inomináveis para as crianças que eram, pois o Pacto do Silêncio acoberta os tiranos a nos usurpar todos os direitos, inclusive a integridade física e moral. A estratégia de culpabilização das vítimas e da transferência da dívida e da projeção da morte é completamente indigna, insana, demente e imoral... É ruptura de Pacto Social pois é o contrário do que se pode esperar, não há proteção à infância, estamos simplesmente expostos à perversidade construída milenarmente! Só o desejo deles conta, só a existência deles importa, de seres que se fazem de superiores aos outros para nos usurpar todos os direitos? Que vilania, contra crianças indefesas! Para os feridos, as artes, o auto-conhecimento, a psicologia, os processos de resiliência solitários em meio à depressão e solidão. E no deserto afetivo fazer nascer as cores, a beleza, a poesia das palavras encontrando formas de expressão da angústia da falta do Outro...
Voltando ao Cyrulnik: 
O despertar da criatividade necessita uma falta. “A criação do símbolo decorre da perda do objeto que antes trazia total satisfação.”
Compreende-se que o mito do duplo ou a magia do espelho possuam um efeito euforizante, à beira da angústia, pois é se havendo com a morte que se faz nascer uma imagem.
Reconhecer a perda até a morte e enfrenta-la para ressuscitar o amor perdido está no “berço da cultura humana”. E para que essa impressão passe da perda ao progresso, basta um pequeno gesto ou uma simples palavra que oriente a criança para a criatividade e faça nascer nela o maravilhamento da magia. 
A arte não é um lazer, é uma pressão para lutar contra a angústia do vazio... As crianças brutalizadas não têm escolha. O que elas conseguem transformar em hino à alegria é a cacofonia do desespero. É pela representação que elas tomam seu destino em mãos. O desenho toma forma narrativa em que a criança expressa e dirige a alguém seu mundo íntimo. O talento consiste em expor sua provação numa intriga engraçada. O talento supremo consiste em expor sua infelicidade com humor. Quando essa metamorfose da representação é possível, o acontecimento doloroso fará o mesmo caminho no teatro ou no desenho. O humor não é o escárnio da ironia nem a negação da agressão, nem mesmo a transformação de um sofrimento em prazer. É a memória do trauma, sua representação que se torna menos dolorosa quando o teatro, o desenho, a arte, o romance, o ensaio e o humor trabalham para construir um novo sentimento de si mesmo. 
Os torturados ou filhos de torturados reelaboram a imagem de si mesmos pela ação extrema e pela reflexão séria. Não pelo humor. A maioria das vezes engajam-se em ações militantes...
Quando os traumatizados não conseguem dominar a representação do trauma simbolizando-o através do desenho, da fala, do romance, do teatro ou do engajamento, então a lembrança se impõe e captura a consciência, fazendo voltar incessantemente não o real, mas a representação de um real que os domina. 
Conclusão
Há previsões que no século XXI as exclusões vão se agravar. Quando uma criança for expulsa do seu domicílio por um problema familiar, quando for colocada numa instituição totalitária, quando a violência do Estado se estender ao planeta, quando ela for maltratada por aqueles que deveriam lhe proteger, quando uma avalanche de sofrimentos a soterrar, será preciso agir sobre todos os momentos da catástrofe: 
- o momento político para lutar contra os crimes de guerra, 
- o momento filosófico para criticar as teorias que as preparam, 
- o momento técnico para reparar os ferimentos e 
- o momento resiliente para retomar o curso da existência. 
A vida é demasiado rica para se reduzir a um discurso. É preciso escrevê-la como livro ou cantá-la... A resiliência é um processo, uma transformação através de atos e palavras, inscrever sua história numa cultura. 


***
Achei esta frase muito boa: "A slave is one who waits for someone to come and free him." Ezra Pound 
Não se deve mesmo esperar do outro, o que recebemos dele, vem quando menos se espera e só sabemos depois, quando aquilo é confirmado porque ressoa na nossa experiência.

Mirian Magia / Outubro 2010

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